HISTÓRIA E FOTOGRAFIA
Paulo Humberto Porto Borges
Na produção acadêmica brasileira, a fotografia e a imagem fílmica surgem enquanto objeto de pesquisa somente a partir da década de sessenta com o doutorado de Paulo Costa Junior, intitulado Tutela penal da intimidade e o direito de estar só defendida em 1967, até o final da década de setenta foram mais quatro teses entre mestrados e doutorados, com destaque para abordagem histórica da fotografia no Brasil de Boris Kossoy, Elementos para o estudo da fotografia no Brasil no século XIX, concluído em 1979. Nos anos oitenta foram produzidos cerca de doze teses acadêmicas, entre elas o festejado mestrado de Arlindo Machado A ilusão especular, que em pouco tempo tornou-se clássico ao ser publicada pela FUNARTE em 1988, no qual o autor se contrapõe de maneira feroz a idéia da imagem fotográfica enquanto reflexo da realidade, ao afirmar que toda linguagem fotográfica é construção e, conseqüentemente, possui uma matriz ideológica de classe. Nas palavras de Machado "se é verdade que os critérios de 'imitação' do mundo visível pelos signos figurativos são decorrência da história do grupo social que os pratica e se é verdade que cada grupo representa o que vê e vê o que representa a partir de certos pressupostos gnosiológicos que conformam o seu modo particular de se impor na sociedade, então o exame detalhado do código da fotografia e de seus sucedâneos deverá revelar - esperamos - a estratégia operativa da burguesia ascendente que o inventou" (Machado, 1987:20). A década de noventa foi bem mais prolixa, produzindo cerca de uma centena de trabalhos referentes à linguagem fotográfica e fílmica.
Historicamente este boom da pesquisa na área imagética vem na esteira do movimento de questionamento de paradigmas em que o pensamento pós-moderno relativiza a tradição materialista.
Devido a isso, praticamente toda esta produção está eivada de um discurso pautado na mágica do real fotográfico (Fontes, 1989:151), nas diversas realidades contidas pela fotografia (Kossoy, 1989:37), na sua característica eminentemente sensorial e sensitiva (Guran, 1992:10), na perspectiva da imagem ser uma "espécie de ponte entre a realidade retratada e outras realidades, e outros assuntos, seja no passado, seja no presente" (Paiva, 2002:19), na idéia de que as "fotografias não são decodificadas como uma linguagem, elas são interpretadas criativamente" (Bittencourt, 1994: 236), na concepção de que "a foto torna-se o referente de si mesma" (Koury, 1998), de que as imagens fotográficas são antes de tudo "objetos culturais autônomos" (Camargo, 1999:33) e, conseqüentemente no aspecto polissêmico da linguagem fotográfica, o que permitiria diversas e infinitas interpretações. Como nas palavras de Maria Dantas "entre o leitor, a fotografia e o autor há um campo de intencionalidade impossível de ser registrado, mas que impregna o acontecimento (...) Assim, o que emerge é resultado da impossibilidade de redução, sendo sempre o espaço reservado a criação que alimentam e reciclam leituras do mundo", devido á isso, para se interpretar uma fotografia é necessário utilizar enquanto método "a imaginação e os sentimentos como campos que tecem o itinerário argumentativo do conhecimento", pois "a memória contida nos dados materiais só é passível de ser acionada quando permite que uma rede de sentidos - olhar, desejos, emoção - possam vir à tona borrando a exatidão disponível na fotografia" (Dantas, 2001). Ainda segundo Maria Dantas "tal proposição coloca para a pesquisa a necessidade de abdicar da assepsia dos conceitos da objetividade fragmentária, da metonização da ciência que separou, cindiu razão/desrazão, real/imaginário" (Dantas, internet).
O discurso pós-moderno na área imagética, fotográfica e fílmica acompanha a lógica da chamada Nova História em seu "alargamento das fontes tradicionais por meio de novos olhares, olhando o que todo mundo olhou e ninguém viu". Não por acaso, eleger-se-á a fotografia como um objeto privilegiado de estudo, torna-se hegemônico e sedutor, a ponto de confundir mesmo quem, paradoxalmente, afirma trabalhar com os conceitos marxistas de totalidade e contradição.
A grande maioria destes trabalhos são estudos sobre a hermenêutica fotográfica e fílmica enquanto possibilidade de representação e técnica artística pautados a partir da crítica ao objetivismo fotográfico e a relativização da imagem fotográfica enquanto documento histórico.
A imagem fotográfica - como qualquer documento - está aberta a diversas interpretações e leituras, dependendo das informações do expectador, assim como suas opções teórico-metodológicas. José Claudinei Lombardi, demonstra que, ao negar a possibilidade de apreensão da realidade objetiva, o pós-modernismo afirma que a "única saída é voltar-se para uma postura subjetivista e, no limite, defender a 'dessubstancialização do sujeito'. O subjetivismo pós-moderno não está significando, necessariamente, o privilegiamento do sujeito no processo de construção de conhecimento, em oposição ao objeto ou a realidade. Embora esse sentido clássico permaneça subjacente, para essa postura o que importa é a sua 'sensibilidade' para captar o acaso, o contraditório, o aleatório, o imponderável, o incompreensível (Sevcenko,N., 1990,p.54)...objetivando, simplesmente, o humor, o prazer, a contemplação, sem nenhuma outra finalidade senão da 'satisfação' (Idem,ibidem); é a pressuposição do indivíduo, como 'receptor de imagens aleatórias' , perceber o mundo como espetáculo fragmentário, sem totalidade e irracional (Santos, J.F.,1990, p.60) e 'rir enquanto é tempo' (Idem, p. 71); é a representação, a metáfora e a simulação construída e esquematizada eletronicamente (Peixoto, N.B. e M.C. Olalquiaga, 1990, p. 75-76)" (Lombardi, 1993: 148).
Entretanto, como ler uma fotografia enquanto documento histórico?
Em um artigo denominado As imagens canônicas e o ensino de História (Saliba, 1998), o historiador Elias Thomé Saliba resvala neste tipo de discurso pós-moderno e subjetivista ao afirmar que as imagens (inclusive a fotografia), quando não trazem nenhum palavra escrita, comentário ou legenda podem apenas impressionar, seduzir ou comover, não se prestando para o trabalho histórico, "deixei para o final talvez a observação que vim omitindo até aqui, mas que talvez seja a mais importante: como já disse tão bem Pierre Sorlin, nossa relação com as imagens, canônicas ou não canônicas, é sempre uma relação emocional. Há em primeiro lugar, a emoção que sentimos ou não ao ver uma imagem; em segundo lugar, a emoção daquele que faz a imagem; e, por último mas não menos importante, a reação emocional daquele que é objeto da imagem". Mais a frente, ao discorrer sobre sua preferência a filmes clássicos para se trabalhar em sala de aula, argumenta que "agora, eu, pessoalmente, começo pelos filmes 'clássicos', em primeiro; pois eles ainda mostram-se capazes de me emocionar (...) quando falei que alguns filmes 'clássicos' ainda são capazes de me provocarem emoções, não falei gratuitamente. Repito, não há critérios objetivos para a escolha, porque nossa relação com imagens em movimento é uma relação emocional". Apesar de concordarmos da dificuldade em se trabalhar uma imagem sem nenhum referente ou suporte escrito, não é possível entendermos a imagem fotográfica como uma mera percepção sensorial alijando-a de sua própria historicidade, inclusive, e é bom que se destaque, a própria emoção não deixa de ser um produto de nossa vivência e práxis, "e mesmo as formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais", e estes são os critérios (Marx, 1984: 37).
Nesse sentido, é necessário percebermos que a imagem fotográfica é um documento diferenciado, pois, ainda que não traga a realidade em sua totalidade, enquanto reflexo, traz, através de sua tecnologia e processo mecânico de registro, elementos que realmente pertencem a materialidade objetiva. Devido á isso, a esta característica típica do processo fotográfico, não são poucos os diversos historiadores que quando necessitam de um dado documental que realmente comprove seu argumento recorrem as fotografias de época com intuito de afirmarem que aquilo "realmente" foi desta forma, recorrendo a imagem fotográfica enquanto prova irrefutável do passado. Apesar da imagem fotográfica não se prestar por si só enquanto prova de uma determinada verdade histórica, é necessário ter claro que o registro fotográfico, mais do que outros documentos, permite uma representação que contêm elementos da realidade objetiva fotografada.
Toda e qualquer imagem fotográfica possui uma historicidade essencial, que aflora com mais ou menos força de acordo com a pergunta formulada. E, considerando, que todo "acontecimento" é potencialmente histórico, dependendo, novamente, das perguntas a serem feitas pelo pesquisador, afirmo que toda fotografia, assim como os acontecimentos que estas registram - ao contrário de apontarem para um passado inacessível - são potencialmente históricas e levam os sinais e os rastros de seu tempo. A despeito de sua técnica, toda fotografia carrega uma intensa humanidade, e apesar dos procedimentos técnicos e mecânicos, toda imagem fotográfica é passível de interpretação e leitura. A produção de registros fotográficos "em determinado lugar e em uma época determinada caracteriza o documento examinado (a fotografia) e lhe dá um caráter histórico e as características que a ligam ao lugar que ocupa no interior do desenvolvimento geral" (Leite, 1992:120). Nas palavras do fotógrafo João Urban sobre seu trabalho com bóias-frias:
"Antigamente, acreditava que buscava a foto-verdade, uma imagem que fosse a reprodução da realidade. Hoje vejo que não é bem assim. Meu trabalho sobre os bóias-frias é minha idealização do bóia-fria. Percebo que o conteúdo da realidade fica constrangido pela minha visão particular desse personagem. É assim com cada fotógrafo, meu bóia-fria é diferente do que está no trabalho de Nair Bendicto, é diferente daquele do Sebastião Salgado. Mas são todos bóias-frias. Então, a fotografia documental não existe sozinha, nem é isenta do comentário pessoal de cada fotógrafo. É uma gota de realidade. O registro de algo que aconteceu num determinado momento. É um registro histórico importante. A linguagem fotográfica tem um certo tipo de gramática. Estudar a nossa época por meio de um trabalho fotográfico é algo fundamental." (Apud, Persichetti, 1997:39).
A imagem fotográfica, enquanto documento, ainda que seja incompleta e seletiva, pertence a uma dada realidade e aponta para uma determinada verdade histórica, afinal, como diz Urban, independente das versões pessoais "são todos bóias-frias" e disso não há escapatória. A construção do saber histórico a partir da linguagem fotográfica é perfeitamente possível, desde que se respeite e interprete a subjetividade inerente a fotografia. A fotografia, apesar de sua aparência objetiva, possui uma subjetividade duplamente mediada, seja na sua concepção material, seja na sua concepção ideológica. Afinal, a fotografia é produzida através de diversas técnicas dependendo do período e do conseqüente avanço tecnológico, como tipo de filme, velocidade e características da máquina fotográfica, o que, conseqüentemente acarreta em imagens, cores e composições distintas, além de, até a metade do século XX, ser produzida preferencialmente pelas classes dominantes, detentoras da tecnologia necessária para a sua produção, sendo, neste sentido, uma construção documental a partir da visão destas classes.
Através de uma única imagem é possível acessarmos um inventário de informações acerca de um determinado momento histórico, mas, estas informações somente serão codificadas através de uma metodologia correta e se vinculadas ideologicamente à sociedade de classes. A imagem somente servirá enquanto fonte se respondermos as seguintes perguntas: quem a produziu, a partir de qual classe social, de qual grupo cultural, para quem foi produzida e com quais intenções? A partir destas respostas o retrato fotográfico poderá ser decodificado historicamente.
Brasília Submersa
Há 11 anos